quarta-feira, 13 de maio de 2020

Irving, a pornografia e a ditadura brasileira


“Assinando meu nome verdadeiro, escrevi diversos livros de que foram vendidos milhões de exemplares; estes livros foram traduzidos para quase todas as línguas. Alguns de meus romances foram transformados em filmes, viraram especiais de televisão ou – em forma de peças – chegaram aos palcos da Broadway.”
Esta é parte da apresentação de Christopher Palmer na orelha da edição brasileira de “Ela”, seu livro mais famoso, e ajuda a compor o mistério em torno da obra. No entanto, fica difícil acreditar nesta declaração quando se lê o texto de Palmer, ou fosse lá quem era o autor:
“Eu a encontrei na chuva, à noite, debaixo de umas árvores. Foi naquele momento que a beijei pela primeira vez. Caminhávamos juntos, protegidos por um guarda-chuva; a chuva nos cercava. Estávamos de braços dados. Um carro passou pela rua molhada, deixando-nos a sós. Não era tarde, mas a chuva prendera todas as pessoas sensatas em casa.”
Convenhamos que não parece texto de um famoso escritor best seller, mas antes o de um autor mais limitado, acostumado a escrever novelas pornográficas rasteiras ou livros de banca de jornal. Na verdade, “Ela” é realmente isso: um livro raso, bem distante das aspirações intelectuais pretendidas por seu autor, com descrições cruas, mas que teve o mérito de ser o “professor” de várias gerações, quando o assunto era o sexo. Principalmente no Brasil dos anos 70.
Apesar de a história ser apenas a descrição, sem atenuantes, de uma sequência de transas das mais variadas, “Ela” guarda um ranço brega próprio da época em que foi produzido. Por exemplo, os protagonistas não têm nomes, mas seus órgãos sexuais são chamados entre eles de Irving e Matilda. A mulher tem problemas afetivos, o que poderia servir para justificar seu comportamento sexual, deixando a obra também com um fundo irritante de falso moralismo.
Tudo isso junto, nos dias de hoje, soaria bem ridículo. Então, qual seria o mérito de “Ela”? E porque o livro vendeu tanto e ficou tão famoso no mundo inteiro?
Em outros países não sei dizer, mas no Brasil vivíamos uma ditadura militar que perseguia a tudo e a todos. Cassandra Rios, famosa escritora pornográfica da época, se queixou durante toda a vida desta perseguição. No entanto, “Ela” vendia como água em quase todas as livrarias do país e circulava entre os estudantes até mais do que o “Manifesto Comunista”, de Marx e Engels e, pasmem, aparentemente ignorado pela ditadura.
Publicado no início dos anos 70 pela editora carioca Artenova, rapidamente chegou à cinco edições e, embora esteja fora de catálogo há muito tempo, continua disputado nos sebos e lojas de livros usados. A obra, portanto, se ressente do clima em que foi gerada. Não traz quase nenhuma referência ao autor que não as notas das orelhas e, apesar de trazer, também, uma nota do tradutor dizendo que iria respeitar o anonimato do autor original, permanecendo ele mesmo também incógnito, sabe-se que foi Germano Freitas quem traduziu e adaptou o livro.
Alguns estudiosos, inclusive, afirmam que o livro seria do próprio Germano ou de alguma escritora conhecida como a já citada Cassandra Rios ou Adelaide Carraro, ou seja, seria uma obra brasileira feita sob encomenda da Artenova. Essa história de que seria um livro estrangeiro de um escritor famoso sob pseudônimo teria sido criada somente para burlar a ditadura militar brasileira.
Coincidentemente ou não, mesmo com toda a tecnologia de busca de informações existente hoje em dia, nada pode ser encontrado fora do Brasil sobre a obra de Christopher Palmer – que ainda escreveu “Ele”, “Nós”, “Yvonne”, “Elza”, “Pecado antes do café”, “A hora do amor”, “Amor sem limite” e “Submissão” – , o que só aumenta o mistério que envolve um livro pornográfico que desafiou os militares ao levar o sexo sem pudor para a massa.


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